Cesar Aché é um dos mais importantes colecionadores de Arte Popular do país. Começou a formar a sua coleção em 1975, quando adquiriu uma peça do artista Nino, em Fortaleza. Um ano depois, inaugurou a sua galeria em Ipanema, centro do mercado de arte naquele tempo. Era um espaço muito charmoso que inovou na decoração de interiores, com um chão de sisal natural e móveis desenhados por ele mesmo. Sua loja iniciou com a venda de gravuras – Cesar sempre gostou de arte em papel – e em 1977 a arte popular foi incorporada ao acervo.
Ele viajava pelo Brasil todo, conhecendo e visitando artistas, escutando histórias locais e comprando obras... Muito rapidamente começou a separar as suas preferências, em meio às compras que fazia para a galeria. “Ao longo dos anos eu fui fazendo uma seleção do que eu mais gostava porque minha coleção nunca foi uma acumulação. Cada uma dessas foi comprada individualmente e por um motivo. Nada aqui veio aos lotes. Mesmo os Ex-votos eu comprei um a um.” (Cesar Aché, 2025).
Em entrevista oral à autora, em julho 2025, Cesar rememorou a história de sua coleção e alguns dos trechos de nossa conversa seguem aqui destacados como citações diretas porque ele explica o processo muito melhor do que eu poderia retransmitir. Transformei as minhas perguntas em intertítulos, interconectando fluxos e temas.
Cabe salientar que as peças que ele coleciona foram escolhidas com muito esmero e individualmente, conforme acima. São peças com 40 anos de trajetória e cujas histórias lhe foram passadas pelos próprios artistas. Esta é uma característica fundamental dos trechos que se seguem: as histórias que Cesar conta, ele escutou da própria fonte oral de cada uma dessas tradições. São histórias regionais e populares contadas por meio da arte e expressas nessa exposição.
As obras expostas nesta mostra --concebida e curada por Cesar Aché para acontecer na Galeria Evandro Carneiro Arte, em setembro de 2025—estão todas à venda. Como dito no início deste texto, a concepção de coleção dele nunca foi acumulativa. Primar pela qualidade sempre foi mais importante do que a quantidade. Assim, chegou um determinado momento em que Cesar resolveu passar adiante as suas peças, em conjunto com as histórias que delas emanam. Cada uma com sua peculiaridade e narrativa.
Laura Olivieri Carneiro
Setembro 2025
Preservação cultural e usos da cor pelos artistas
“O meu olho sempre foi o da preservação. Eu tinha muito interesse no aspecto formal das obras: como é que esses artistas resolveram a espacialidade, os cortes e o uso das cores? Como a cor foi usada? Porque o uso da cor é diferente em cada um desses artistas. Todos do interior e naquela época em que eu tinha a loja, então, não havia internet nem nada, eles nunca viram nada de arte, nunca viram os fauvistas alemães. E veja, esse Nino aqui como o uso da cor é interessante! Há outros artistas que quase não usam a cor. A Noemiza usa exclusivamente a cor do barro e o branco. O Sr. Ulisses usa mais para realçar os detalhes. A cor no sr. Ulisses sublinha a escultura, mas não é um elemento essencial. É mais ou menos – fazendo um paralelo – como o uso da cor pelo Rubem Valentim em seus relevos, em que o Rubem faz um relevo e toda a silhueta é coberta de uma cor. O sr. Ulisses acentua os volumes com uma linha de cor. Já o Nino usa a cor para definir os planos de corte da obra.” (Cesar Aché, 2025).
Temas e ciclos: memória social e diversidade regional
“Naqueles anos, havia temas, cenas e tipos de criações que deixaram de existir, como os brinquedos populares. Esses brinquedos eram feitos por pessoas pobres para crianças pobres brincarem. Mas as coisas foram mudando no país e no mundo... Em uma viagem mais recente que fiz ao Ceará – que sempre foi um grande centro de Arte Popular e as coisas convergiam para Fortaleza para serem vendidas nos mercados e nas feirinhas das ruas e das praças – perguntei por brinquedos para um artista velhinho que me disse literalmente o seguinte: ‘Ah, meu senhor, eu sei muito bem o que o senhor está procurando. Já vendi muito brinquedo, mas hoje nem filho de pobre brinca mais com esse tipo de coisa. Filho de pobre quer brinquedo chinês.´ O que ainda se acha hoje de brinquedo, são feitos para serem enfeites (como essa roda gigante cujas luzinhas piscam e o carrossel que vou botar na exposição).”
“Alguns artistas eu tenho mais que outros. A Noemiza por exemplo e o Vitalino faziam as obras a partir dos ciclos do casamento, do trabalho, das profissões, dos presépios... E como eu tinha muito acesso eu comprava.”
“Havia dois meninos, primos, que trabalhavam a tradição local: um fazia as lendas do folclore e o outro fazia peças com onças a partir das histórias que eles ouviam. Fábulas com tamanduás (Wanderley) e coisas assim. Eu gostava de recolher as obras porque as peças contam histórias. Tudo na minha coleção tem história e a maioria tem mais de 40 anos. E eu conservo bem, cuido. Aqueles panos bordados [Cesar vai mostrando as peças] estão guardados há 15 anos em um baú, embaladinhos em plásticos. Eu comprei de um comerciante de Minas Gerais. Essa Nena, uma Babel de barro, ela é discípula do João das Alagoas. João montou um ateliê coletivo, fez um forno e ensinou a vizinhança. Esse São Jorge é do Leonilson.”
“Essa cabeça de boi é um monumento! Não é uma maravilha?! Nunca vi outra igual. E o boi é um dos seres míticos de que eu gosto – eu estava te falando que coleciono uns seres míticos. Dentro do folclore nordestino, muitas lendas giram em torno do boi. O Folguedo do Bumba Meu Boi que parte da mulher do fazendeiro que queria comer a língua do boi. O boi é também símbolo de força e riqueza e às vezes é capital. O sujeito tem lá uma rocinha com cinco cabeças de boi, já tem alguma coisa.” (Cesar Aché, 2025).
Vale do Jequitinhonha e Roberto Burle Marx cliente da loja
“A primeira pessoa no RJ que comprou Jequitinhonha fui eu. E o Roberto Burle Marx era meu cliente na loja, comprava muito comigo e levava lá para o sítio, inclusive peças de grandes dimensões, como uns Ninos enormes que estão lá até hoje. Quando ele fazia aniversário, aquelas senhoras que idolatravam o Roberto e que iam escutar ele cantar Schumann, faziam fila na porta para comprar presentes para ele. Elas queriam que eu entregasse lá, então eu mandava tudo numa Kombi para Guaratiba.”
“A cerâmica do Jequitinhonha não é antiga, a não ser a utilitária, que aí é ancestral até, de influência indígena. Havia alguns quilombos ali também e Minas é muito cabocla, muito indígena. Nada do Jequitinhonha é anterior aos anos 1960. Então tudo isso aqui que você está vendo [mostra a mesa em que estão as peças do Vale do Jequitinhonha] começou a ser produzido no final dos anos 1960 e anos 1970. A Dona Isabel, antes dos anos 1970 ainda fazia louça utilitária. É um equívoco datar peças do Jequitinhonha antes dessa época.”
“Havia em Belo Horizonte a Codevale –Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (do governo do estado de Minas). Eu fui lá pela primeira vez quando abri a loja em 1977. A codevale revendia a arte do Vale do Jequitinhonha. As encarregadas eram duas senhoras que iam até os artistas que sobreviviam por causa delas. Elas despachavam para o Rio em caixas de compensado, usadas para eletrodomésticos. A Codevale foi muito importante.” (Cesar Aché, 2025).
Transmissão do saber fazer artístico
“Dona Isabel ensinava toda a vizinhança a fazer as bonecas. Dona Isabel uma vez me disse: ‘Ah, eu não tenho esse negócio de guardar um segredo não. Eu ensinei meu ofício para a rua inteira’. A primeira pessoa que a Dona Isabel ensinou foi o João, genro dela. A principal das alunas dela foi a Placedina.”
“O Sr. Artur Pereira tinha tantas encomendas que repassava para os vizinhos para quem ele ensinava. Ele uma vez me disse: “Eu ensinei todo mundo porque percebi que se ensinasse o que eu sei para outras pessoas, elas poderiam melhorar de vida”. Então ele ficou rico, o Adão também (quer dizer, rico comparativamente a vida anterior deles). Uma vez eu fui à casa do Adão e comprei todas as peças. Em troca ele queria me oferecer refrigerante. Abriu a geladeira e começou a servir refrigerante que eu não gosto, nunca gostei. Mas tive que tomar porque aquilo era uma forma de me agradecer e também de mostrar que tinha refrigerante...”
“O Vitalino não fez escola, os filhos eram seus herdeiros, era uma guilda familiar. Zé Caboclo e Manuel Eudócio aprenderam com o Vitalino, mas não são discípulos dele, criavam com a sua própria característica.”
“Nhô Caboclo, por exemplo, não ensinou ninguém. Vivia na rua, abandonado, quase um indigente mas era um gênio.” (Cesar Aché, 2025).
Todos os trechos acima são partes de uma conversa oral com Cesar Aché em julho de 2025 e transcritas pela autora em agosto do mesmo ano para o folder da exposição de sua coleção na Galeria Evandro Carneiro Arte.