Dois artistas considerados naives, mais ou menos contemporâneos entre si e que cresceram no Ceará, reproduzindo a natureza com pontilhismos e cores tropicais. Um iniciou o seu percurso artístico ainda menino, pintando paredes com carvão, tijolo e mato, assim que chegou em Fortaleza, aos seis anos de idade. A outra, cearense de Iguatu, iniciou a pintura já aposentada do serviço público, aos 70 anos e residindo no Rio de Janeiro.

Comecemos pelas damas: Maria Grauben Bomilcar Monte Lima nasceu no ano da Proclamação da República (1889) e faleceu em 1972. Sabe-se pouco a respeito de sua biografia anterior à sua trajetória artística, contudo, tratava-se, sem dúvida, de uma mulher corajosa e pioneira, por ter vindo trabalhar no Sudeste, no início do século XX. Em 1910 já era uma das primeiras funcionárias públicas de sua época, na capital federal de então - parece que da Receita Federal, conforme soubemos por uma fonte oral. Em entrevista encomendada pelo MEC e realizada com a artista por Ricardo Cravo Albin -quando diretor do MIS- e em parte reproduzida no Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos vol. 2, diz-se que ela tornou-se pintora por causa do crepúsculo. Moradora de Ipanema, o por do sol lhe encantava pela beleza e pelos tons daquele momento do dia. Ela chorava de emoção e uma sobrinha lhe deu pincéis e tinta por acreditar que aquilo era uma característica tão genuinamente artística que ela deveria tentar se expressar. E pintou, com sucesso, durante doze anos a partir de então. Com cores e tons bastante crepusculares e motivos alegres. Na mesma entrevista, Grauben dizia que não gostava do feio e nem do triste, por isso pintava passarinhos e borboletas nas florestas, com uma base de tela quase sempre azul ou lilás, como o céu de que tanto gostava e o mar de Ipanema, nas suas horas preferidas.

Sua singela pintura circulou pelo mundo após ser reconhecida por Ivan Serpa, então professor do MAM-RJ. Foi sua aluna por pouco tempo e seguiu autodidata com suas preferências temáticas e cromáticas. Iniciou suas mostras individuais justamente ali, com o mestre, em 1962 e 1964 (MAM-RJ); em 1965 na Galeria Relevo (RJ) e depois em 1968 e 1969 na Galeria Copacabana Palace (hoje Galeria Ipanema, RJ). Expôs coletivamente em 1962 na Galeria Relevo e no mesmo ano e 1963 no SNAM - Salão Nacional de Arte Moderna, RJ; na Bienal de São Paulo em 1963 e 1965; II Bienal Americana de Arte na Argentina, 1964; Galeria Jacques Massol em Paris (1965). Postumamente participou de coletivas de arte naif no Paço Imperial (1989, ano de seu centenário) e no CCBB (1992, ano da Rio Ecologia), dentre as mais relevantes.

Francisco Domingos da Silva (1910 – 1985) tem uma pintura algo mais fantástica do que sua conterrânea. Talvez por ter nascido no Acre e lá ter vivido a sua primeira infância, tempo no qual as memórias são as mais inconscientes. Ainda que também pinte pássaros, os seus são mais fantasiosos. Misturam-se com peixes fabulosos, cobras enormes e até mesmo dragões que expressam o maravilhoso daquela floresta que habitava o seu imaginário de artista. Aos seis anos de idade, foi morar no Ceará e viveu em uma fazenda perto de Fortaleza, onde continuava a conviver com animais e iniciou seus desenhos. Conforme dito acima, com materiais que encontrava na natureza, como tijolos e carvão e sobre paredes e muros (Lélia Coelho Frota, Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro, 2005). Até que em 1943 conheceu Jean Pierre Chabloz que apreciou seus grandes pássaros e peixes amazônicos e o apresentou ao guache, tinta que o artista jamais abandonou, usando-a sobre diversos suportes, sobretudo papel e cartão, ainda que tenha pintado também a óleo sobre madeira. Chabloz o apresentou ao mundo da arte, inicialmente com uma exposição em Fortaleza (1943), depois no Rio de Janeiro (1945); em Genebra (1949); Lausanne (1950) e Neuchâtel (1956). Nos anos 1960, expôs na Galeria Relevo (1963) e na Galerie Jacques Massol em 1965, possivelmente na mesma ocasião em que Grauben expôs lá também! Em 1966 recebeu menção honrosa na Bienal de Veneza, a qual contou com a curadoria de Clarival do Prado Valladares, que na ocasião escreveu: “é o intérprete de uma mitologia diluída na tradição oral de uma região imensa que só ele fixou e refletiu (...)” referindo-se à Amazônia. (Apud. Lélia Coelho Frota, 2005, p. 134). Também o então Ministro da Cultura da França, André Malraux, disse se tratar de “um artista primitivo dentre os maiores do mundo.” (Apud. Walmir Ayala, Dicionário de Pintores Brasileiros, 1997, p.371). Apesar de sua excepcional qualidade, Chico da Silva bebia muito e nos anos 1970 teve alguns surtos psiquiátricos, tendo sido internado recorrentemente. Em 1977 chegou a ter alta de uma clínica para participar da I Bienal Latino Americana, promovida pela Bienal de São Paulo, mas retornava sempre à internação por recaídas da doença (Lélia, 2005). Por causa dessa instabilidade adotou auxiliares que trabalhavam com ele e, em sua confusão mental, passou a assinar obras alheias e/ou coletivas. Assim, deu-se início ao processo de confusão quanto à autenticidade de seu trabalho, quase chegando a comprometer seu nome no mercado de arte. Contudo, por se tratar de um artista excepcional, faz-se necessário um olhar atento, a fim de se continuar promovendo seu talento.

Aqui nesta mostra apresentamos dez trabalhos de cada artista, escolhidos com muito critério. Vale a visita!   

Laura Olivieri Carneiro, janeiro de 2022.