Os azuis e as cores de Claudio Valério, docemente iluminados em aquarelas e afrescos arejados, abrigados à sombra das tragédias cotidianas ou desembaraçando dourados em reverências à memória da história da arte e da pintura em particular, designam, em boa medida, o feitio de sua aflita e generosa personalidade, sua densa e lúcida obra, suas ideias e originalidades: em pausas breves, levam-nos a transpor e descobrir, terna ou dramaticamente, as singularidades entre forma e significação, técnica e emoção, íntimo e solidário.

A liberdade de escolha dos temas vem sendo consolidada desde o início da carreira, quando, em 1978, estreou a primeira exposição individual na galeria Rodrigo Melo Franco de Andrade, no prédio do Museu Nacional de Belas Artes, e já então elegeu a violência implacável da ditadura militar como objeto de uma série de desenhos em tamanho natural e em alguns suportes monumentais. A mostra foi amplamente elogiada pela crítica de arte, à época com nomes de lastro. Jovem talentoso saído dos ateliês da Escola de Belas Artes, censurado no 1º Salão Carioca de Arte em 1977, insistiu no desafio da denúncia política, chamando atenção para “o confronto entre a barbárie e a placidez” – em suas palavras –, esta última representada pela inclusão de figuras velazqueanas ao redor do corpo nu de uma mulher torturada. Trinta e três anos depois, Claudio refez os grandes desenhos perdidos e reuniu-os a alguns remanescentes, em exposição no MNBA. Agora, com menos fúria, mais refinamento e a mesma dramaticidade. Açougue latino, de 1982, é um exemplar contundente da época e do tema.

Na década de 1990, Van Gogh e Picasso foram objetos de duas extraordinárias exposições: Cartas a Vincent, um inspirado comentário pictórico das tantas infelicidades do pintor holandês, a partir da correspondência com seu irmão Theo, apresentada em Niterói, no Rio e em Fortaleza, entre 1990 e 1991; e La California e um tríptico, casa e ateliê do espanhol em Cannes nas décadas de 1950-1960, exibida em Niterói, Rio e São Paulo. Na presente mostra, seis expressivas obras das duas séries podem ser apreciadas: O mundo de Van Gogh e Cipreste: caixa de pintor, ambas de 1990; Ateliê Picasso, 1984; Onírico, 1993; La table ou London, London, 1993 e Puertas y ventanas, 1994. Em La California, Valério examina, decompõe e sutilmente sugere a geometrização dos planos, a expressão espontânea do pensamento, cruzando e associando detalhes arquitetônicos, objetos deslocados, vegetação mediterrânea e memórias tremendas de Guernica devastada durante a guerra civil espanhola. Em Cartas a Vincent, a tragédia existencial de Van Gogh é tratada numa perspectiva audaciosa e fraterna entre os signos da vida e da obra do atormentado pintor e a sensível cumplicidade que aproxima, ambos, do dilema da arte.

Egon Schiele, de 1987, único afresco desta exibição, confirma o que já se sabe e se espera de Claudio Valério: domina o saber e a habilidade das técnicas artísticas. A vivência familiar em torno do admirado pai, Oswaldo Teixeira, e de alguns irmãos igualmente dedicados às artes, assegurou a formação de um artista sofisticado, comprometido, e com as pálpebras viradas às paixões e misérias humanas. Recentemente Claudio e uma equipe de amigos pintores realizaram um belíssimo afresco sobre o muro de sua casa, em Niterói, representando elementos da natureza vegetal em composição que homenageia o pintor e paisagista Roberto Burle-Marx.

A solidão e o anonimato urbanos, os conflitos e injustiças sociais merecem a permanente atenção do artista. Ônibus, de 1981, e Argentina, de 2002, embora descrevam momentos e lugares distintos, enfrentam o desencanto e o esgotamento da tolerância diante dos desacertos oficiais. Argentina reproduz cena de rebelião popular no país, em 2001; Ônibus exibe a contemplação exausta e a indiferença à vista de dois mascarados no carnaval; estes, com fantasias medonhas, parecem mais assustados do que assustar, temem mais do que amedrontam. Não por acaso, a pintura é envolta numa obscuridade cromática conciliada ao desconforto e à precariedade. Um repertório de realismo e realidade que não dispensa espaço para a ilusão. 

Quartier Latin, de 2001, recorta um trecho da paisagem urbana parisiense em que inúmeras chaminés projetadas contra o céu nublado como que ocupam o vazio humano na sequência de janelas e mansardas. Os dois nus, um a carvão, crayon e giz e outro a carvão, crayon, giz e pastel, comprovam o domínio técnico e artístico de Claudio Valério no desenho sólido e estruturado do modelo vivo, praticado semanalmente em conjunto com amigos artistas, desde a juventude e até hoje. Os dois óleos de nus femininos decorrem da excelência do desenho, complementada pela materialidade e cromatismo pictóricos, além do notável e minucioso trabalho de reprodução da colcha de retalhos.

Por fim, e não menos atraente, destaco duas pinturas que acomodaria na categoria dos temas íntimos, entre os demais trabalhos selecionados no ateliê em Niterói e ora expostos na elegante galeria de Evandro Carneiro: Orange, 2006 e Autorretrato, 2004, ambos da série Vida de artista. Quase dois autorretratos. A composição com objetos é tão radiosa que é como se a luz amparasse e persuadisse instrumentos, ferramentas, intuição e intelecto. Já o Autorretrato propriamente dito confronta o espectador com o sentimento arrebatado do artista, a exemplo do Autorretrato desesperado, de Courbet, e do assombrado soldado 33, de Pedro Américo: sem hesitar, Claudio firma sua dedicação à pintura, e os pincéis em riste, quase escapando da tela, consagram sua vocação.

Maria Elizabete Santos Peixoto

Gávea, 25 de abril de 2019